quarta-feira, dezembro 29, 2010

película





fina celulose
invólucro
teia:
expõe a desproteção


o destraído gesto
que não é acaso
mas inverso
descuido


sufoca
exaure rompe

sob as vestes
do desvelo
o contrato

quarta-feira, novembro 10, 2010

metrônomo humano


os ponteiros do relógio
tropeçam
na velocidade das demandas
eu
somente
olho a rede
convite ao balanço de Morfeu

terça-feira, outubro 26, 2010

braille




me leva pela mão
mas eu seguro em ti


não me deixa segura demais
que eu preciso não sentir


olha,
se abro pestanas,
posso tropeçar


meu propósito é outro sentido
meu percurso é imprevisto


eu quero
por outras vias
enxergar

domingo, outubro 03, 2010

sobre convicções e coerências...


como assim tatear
com dedos que parecem garras
tal tamanha é a incerteza
do seguro seguinte pouso
do pé
ante pé
no que simula chão
mas é nuvem e vácuo
mais incerto passo
olhos fermidos
convictos
de não abrir mão
nem pés
da linha que traço
******
imagem: le jeune funambule, Jessica Rice

quarta-feira, setembro 15, 2010

poemeto desajeitado




como escorregão depois de tropeço, palavras que se dão as mãos e fazem emenda e palhaço no passo sem jeito de fazer riso, querendo do diário e miúdo extrair o siso e pôr tino no leve encargo de existir encantado........................................................................

muitas linhas caminhante exaurido e extenuado, o verso se pergunta: onde me posso ver abraçado?

salta em sílabas como compasso de tambor ritmado; quer soprar melodias austeras de rebelde e geme como lancinante e mudo traço de reta no asfalto.....................................................................

escorrega nos pontos descarrilhados, é pelas palavras usado e vira verso e poema e cabeça trôpega na partitura de afetos de algum leitor desavisado.

vírus sem dono, depois de escrito: jaz contaminado.

terça-feira, setembro 14, 2010

sonambulismos




movimentos de corpo dormente, que parece inconsciente, e se exime das tarefas insanas, mas se dedica como operário padrão ao mais que além do desejo, o que jaz no que lateja: impulso e gozo.

domingo, agosto 22, 2010

ismos e soluços



do senso comum tiro o pé
que atolo no pirão à mesa
em fervura borbulhante da assepsia

pega o peixe, preta
traz fumegante tirrina
da tua coroa que é a cozinha


nem de luva
proteção
nem mão
de lavoura
tira o úmido da terra

desfaz a proteção
do corpo ante corpo


convida a formiga
me lambe o doce
do piche em flor
o azinhave do meu cobre

sem sapato
me instalo fincado
nessa rua
o senso é bom
mau mesmo é o desacato

põe ordem na natureza
e macaco em todo galho

terça-feira, agosto 03, 2010

KKKKKK


"O riso precisa de eco". Isso nem é meu, é de Henri Bergson. Mas concordo tanto. E gosto deveras de rir, como elixir de salvaguarda da minha humanidade!
Não confio em quem não sabe rir; menos ainda se, somado a isso, também não gosta de comer (em todos os sentidos de alimentos, é claro!). Comer e rir: prazeres humanizantes fundamentais que precisam de eco. E tenho dito.

domingo, julho 11, 2010

ovo a la coq





as vezes tenho muita raiva de não me entender em certas situações, eu queria ser mais plano terreno, sem acidentes geográficos de genealogia, sem tanta óbvia interferência de quem se questiona. e, como allen, o woody, eu queria sonoramente admitir e internalizar: whatever works...
e todo meu otimismo seria suficiente para a consciência de tudo que é péssimo não me tomar de assalto como susto que dá soluço por dias seguidos, ou como um cílio que cai no olho e fica escondido no buraco negro do espaço em que habita o globo ocular por uma semana...
como quem aprecia de verdade nem esperar que a gema do ovo cozinhe até ficar consiste e, até, prefere apreciar a gema líquida, ou ainda mais, o ovo a la coq.

quarta-feira, julho 07, 2010

jardim




eu gosto de saber
que os felinos me seguem
que meu pai
é uma tia velha
e sofri abusos
na infância
tirana
eu mordia
como quem toma
para si o naco
mais tenro
do asfalto
como moradia

terça-feira, junho 22, 2010

joão






joão
xangô
ou conforme seja,
aquele que pela água faz vida
aquele que reina o fogo e o trovão
que raios nos protejam,
que nos opostos se tenha
congregação,
congraçamento
e devoção.

viva são joão!
viva xangô menino!

sexta-feira, junho 18, 2010

dia de viagem, triste e saudosa...


tão lindo na foto, descontraído. tinha uma cara que às vezes parecia sisuda, de tão comprometido que era com suas convicções. um humanista ferrenho, de uma consistência e lucidez particulares e raríssimas. vai, mas deixa uma herança inquestionável. vai, josé, vai espalhar tua semente saramaga por outros campos de energia!

terça-feira, junho 15, 2010

carnavais... e eu que sou "do contra"...

hoje já ouvi que "não sou brasileira", numa das concepções mais óbvias e tortas do que seja patriotismo. e tudo isso só porque não me interessa nem um pouco o jogo do brasil na copa do mundo. alías, tenho um pequeno lampejo de interesse, sim. bem gostaria que a seleção perdesse logo na primeira parte da copa, assim a anestesia carnavalizante geral se dissipava. sinceramente, quando haverá presente (e deixará de ser país do futuro) para um lugar que para por tudo? um feriado atrás do outro; um clima de histeria macunaímica por causa de um esporte com imensa parte dos envolvidos tão corrupta quanto também imensa parte das pessoas e instituições do país?
meu são bakhtin, padroeiro da carnavalização medieval rabelaisiana, valei-nos!

domingo, junho 13, 2010

a esperança: última que morre?


estava eu exercendo ofício, na lida do ensino, quando nos visitou pela janela uma espécie de gafanhoto verde, popularmente conhecido como esperança. e ecoa-nos a crença popular de que, quando uma esperança - inseto - entra numa casa ou pousa sobre alguém é um bom presságio. mas quando há ventiladores de teto em funcionamento, e a esperança acaba por chocar-se, em seu voo, com as pás de ferro de um deles em movimento e cai, ofegando, até fenecer?

quinta-feira, junho 10, 2010

história de Zé




rapaz, era uma noite fria dos diabos... chovia canivete, como se costuma dizer. e eu, nem sei dizer, fui parar ali, naquele canto que eu nem conhecia. me perdi da minha trupe, me desgarrei, e nem mesmo sou uma ovelha. olha, foram dias vagando perdido, minúsculo de caber num dedal, magro como um pobre diabo condenado a fenecer de inanição. pra dizer a verdade eu nem sabia mais se sentia fome, eu era um arrepio de medo e uma angústia vital me agarrando desesperadamente a seguir vivente. e meu único recurso: eu miava, com todas as quase mais nenhumas forças que restavam. e não é que deu resultado! apareceu uma moça, mas eu já tinha tanto medo, que chamava ajuda e a temi, quando ela chegou. tentei me esconder da gigante moça. ela insistiu, como convém aos espíritos solidários e me recolheu.
de tão desnutrido, eu parecia já aleijado. minhas patas traseiras não se sustentavam, eu me arrastava com as dianteiras, precariamente. fui recebido, acolhido, esquentado, acalmado. me levaram a uma doutora que me compreendeu a fraqueza e a desnutrição. ganhei vitaminas e alimentos, além do carinho. agora, vou vingar, feito planta viçosa que precisa apenas de água e terra: pasto.
ahh, me batizaram de Zé, belo nome do qual me orgulho, porque me irmana a uma multidão, bem severina, bem maria, bem zé.

domingo, junho 06, 2010

sobre algumas expressões


o gato escondido com o rabo de fora, literalmente. E essa criança felina da foto adora brincadeira de gente, comigo. a preferida é o "pega", em que grito que vou pegá-la e saio correndo atrás dela, pra levar mil "pitos" dela e ela se esconder, sempre assim, como se fosse uma criança de 3 anos de idade, que "põe as mãos nos olhos e, por não estar vendo, crê que não pode ser vista"! ou seja, esconde-se deixando o rabo de fora!

quarta-feira, maio 19, 2010

da série: dicionário de termos literários



sabe a definição de poesia? as vezes é tão difícil definir algo, ao mesmo tempo tão simples e óbvio, que todo mundo sabe o que é, mas que teima em não assentar nas palavras de modo a se traduzir com objetiva e precisa leveza...
mas basta perguntar ao mocinho de óculos e ar intelectual, do alto dos seus nove anos, que ele criou precisa e ligeira definição, assim mesmo, de supetão:
"é um texto que libera emoções".
e tenho dito, assinando embaixo das palavras dele, Raminho.


imagem em: http://marisamelo.files.wordpress.com/2010/01/poesia_pura.jpg

no bico da cegonha




com quase dez meses de útero e tamanho "normal" de recém nascida, a menina de 47 cm veio de parto normal. diz a mãe que era um rebento tão lindo, cabeludinha e de nariz muito arrebitado.
muito teve que se atrever na vida, para dar conta do 1m e 3 cm que cresceu, até a vida adulta, conservando bem guardadinha e atuante a mesma criança que brinca com nina, seu alter ego felino e preto, no colo enquanto escreve...
e no mesmo dia em que nasceu o menino, só que 1ano e três meses depois... nascia o presente mais especial que ela receberia: o gêmeo.
um dia de festa dupla.

sexta-feira, maio 14, 2010

mês de apurar o sentido do tempo




celebração, que podem ser até coloridos fogos de artifício, de preferência sem estampidos, pois sou adepta dos sons em baixo volume, sempre. eduquem-se os tímpanos, respeite-se o alheio...
e assim faz-se o mês de maio, em mim, duplamente sempre. mês do dia de nascer, mês do dia de reiniciar uma contagem no calendário pessoal, afinal, meu novo ano começa no dia em que minha mãe me mandou pro mundo, preu sair do confortável útero... já passando dos nove meses!
e chegam boas novas outras, neste maio, como presságio de o quanto valem tenacidade, perseverança e, sobretudo, meu segundo nome: paciência.
ufa, eis que nasceu este novo "rebento" esperado 1 ano e meio depois. demorou ainda mais que eu pra chegar...
mas a relatividade de ampulheto me ensina, após daqui a 10 ou 20 ou 30 anos, que terão sido os 15 meses dessa espera? o que fica é o aprendido.


Foto: http://fotos.sapo.pt/7FzO3zByumMfF9Z8SkLq

sexta-feira, maio 07, 2010

parece até mais do mesmo




o quanto já escrevi por aqui sobre felinos, nem sei... mas acho que nunca principiei a história da minha funda relação com os bichos começada pelos cães: primeiro convívio e cuidado de estimação. talvez tenha mencionado arisco (o nome mais despropositado pra natureza de uma criatura; era ele um boxer tão afável que mais deveria se chamar mingau), companheiro meu embaixo da mesa de jantar. mas essa é história outra, a que penso já ter aludido neste sítio.
só que dos muitos cães, amores verdadeiros, sem dúvida, a vida me converteu: pelo encontro com zureta e nina. a proximidade e a coabitação com os gatos é ímpar, peculiar e sutil, como só a elegância e a dignidade da espécie poderiam proporcionar.
a fidelidade não submissa; o amor que ensina limites, medidas, respeito à individualidade e ao tempo de cada um; a independência que não conhece egoismo; o carinho na exata medida; a solidariedade e a paciência de dormir todas as noites ao pé da porta do quarto, para miar pontualmente e despertar para a acolhida matinal... não só aquele que o alimenta, mas aquele com quem se travou O laço. assim é o gato.
os tolos e ignorantes repetem chavões: que é interesseiro e apega-se apenas à casa...
minhas gatas me buscam por saudade; me seguem pela casa apenas para estar junto de mim, sem babar, sem latir, sem se submeter, apenas pelo zelo da companhia, pelo piscar de olhinhos reluzentes de uma quase coruja a dizer que amam.

apegam-se à casa apenas, não é? por que, então, quando viajo - apesar de ficarem em casa e terem quem as alimente e dê água - elas perdem pelos e ficam me buscando pela residência toda?

o cão é que é fiel ao dono, não é? e quem consegue afagar um gato que não conhece e que vem correndo e se estabanando, virando barriga pra cima? zureta e nina são fiéis à "dona" suposta delas (elas que me possuem, na verdade)... desafio os que cheguem e elas permitam intimidades e toques sem antes muito exame, uma aquiescência imensa minha e o veredito (delas) de que a pessoa merece essa concessão. já eu, posso tocá-las, mesmo que elas me saibam dizer sutilmente (com um levíssimo mover de coluna) que não querem o toque naquela hora. afinal, nós às vezes também não queremos ser tocados em um exato momento...

a cada dia descubro algo novo e diferente pelo olhar delas. a curiosidade e a audição inacreditável; o equilíbrio e a absurda elegância; a precisão no "pulo do gato"; a habilidade do silêncio eloquente; a maciez do pelo e o cheiro bom; a higiene e o cuidado de si (inclusive, zelando pelos dejetos enterrados)...

uma vida inteira, aliás sete, cercada de felinos é o que preciso para a cada dia converter-me mais em uma deles. amém.

fotografia: Raíssa Moraes

domingo, maio 02, 2010

canteiro laborioso




vontade de fazer lugar
franciscano sítio
onde espraiar a alma
contida pelo canto
do corpo cativeiro

um cultivo de subsistência
que se assenta
em comedidas abundâncias

um jardim sem distâncias
em que conversam rosas e jasmins
e não disputam
com vulgares borboletas brancas
nem belezas, nem olores
nem visitantes
passarinhos

um canteiro de nonsenses
e um cultivo de abandonos
pra que se atinjam
os condensados sonos
e os sonhos encravados

até nas insuspeitas gentes
que pelos desvãos dali passam
sem saber que lá se perdem
porque adentram espaço
em que lei não é regra
e só tudo o que impera
é a voz do silente

quinta-feira, abril 29, 2010

abril que veio, abril que vai...





só num galope desbragado é que, sem poder nos dar contar, percebemos o quanto é implacável o escorrer do tempo, e inventamos os dias e as horas e os calendários...

imagem: "A Mask Tolls The Knell"
(from Series to Edgar Poe)
1882, lithograph - ODILON REDON

sexta-feira, abril 23, 2010

O que você quer ser quando crescer?




Brincadeirinha das mais saudáveis no processo de lúdico conhecimento de si, despressentido ainda, para uma criança. A perguntinha "clássica" nos vem dos mais vários interlocutores: pais, "tia" das escola, tios e primos, amiguinhos... E tantos são os futuros: bombeiros, veterinários, bailarinas, caixas de supermercado (sim, meu irmão mais novo queria ser um), cantores... até médicos. Por que friso, por fim, o até médicos? Porque me causa espécie ver que, em uma distância de tão poucas gerações, entre meus amiguinhos e irmãos apareciam os que queriam ser médicos quando crescessem, apenas pelo lúdico de se brincar assim, sem as desculpas sexuais que também envolvem a expressão "brincar de médico". Sem puritanismos, meu dEUS! Mas como me assustam as escolhas destas novas geraçõezinhas, com quem lido há tanto tempo. Agora, todos querem ser médicos, mesmo os que já se formaram fisioterapeutas, enfermeiros, matemáticos até... E a outra metade quer "fazer direito"! Assim mesmo, nem é "ser advogado", mas ter diploma de bacharel em direito pra fazer concurso público.
Ai, meu são falecimento lúcido, valei-me Renato Russo: "Que país é este?" Doutores semi-deuses da medicina, porque só eles são profissionais "valorizados" e todos os outros que "os auxiliam" na área de saúde são subalternos que recebem, financeiramente, piso de remuneração muito mais baixo e, por isso, se sentem desvalorizados; ou de "doutores" bacharéis em direito (Doutor é quem tem Doutorado, óbvio assim), que nunca advogaram, mal sabem o que significa filosofia do direito ou justiça e apenas são funcionários públicos com perversa estabilidade, que acaba funcionando como "estagnação", e altos salários, cuja compensação é apenas o consumo. E salve a Tuckson" (Aquele carrão importado que parece um furgão e engarrafa a cidade, atropelando pedestres e ciclistas).

Me deu nostalgia e assumo! Viva a minha pequena trupe vital, na qual habitam bailarinos, palhaços, atores, cabeleireiros, jardineiros, fisioterapeutas, cineastas, costureiros, músicos, plantas, bicicletas e gatos, muitos gatos!

Eu queria ser bailarina, escritora ou professora (na verdade, os três), quando crescesse... Continuo sendo isso, na dança exercendo a pesquisa e a criação; na labuta diária, exercendo o magistério e, na vida, entranhada na escrita. Salve Jeová as gerações vindouras!, que ainda possam sonhar e brincar de "o que você quer ser quando crescer?"

Se não, quem valerá por nós na hora de uma reles pia entupida?

segunda-feira, abril 19, 2010

fragmentos de uma conversa...





sabe um dos melhores amigos que já fiz no meu bairro novo?
o funcionário da emlurb que sempre limpa por aqui, com aqueles carrinhos e farda vermelhinha.
é um negro lindo, de meia idade, chamado Tião; de Sebastião, suponho...
nos vemos todo dia, várias vezes, quando passo de bicicleta ou a pé.
outro dia, saí de carro, e ele estava sentado na sombra, descansando um pouco. aí, encostei o carro pra dar um oi.
ele ficou todo emocionado...
"mas eu que me aproveito de tu", eu disse. vivo te perguntando as coisas!
pergunto a ele tudo que é planta que aparece no caminho e não conheço...

eu costumo prestar atenção, justamente, no detalhe, no "despressentido". é onde moram essências.


imagem: Diálogo IX, de José Roberto Aguilar (1966)

urbe, pólis, aldeia...


com a licença do senhor, vou desabafar umas saudades e umas estupefações, do que guardo no meu embornal de lembranças. muitos passeios aos teus pés, que se costumam chamar raízes, quando tão perto do cais de santa rita, onde viviam os avós paternos. aprender os itinerários dos ônibus, e o traçado das estreitas ruas, caminhar até os sebos ou ir à nezita (comprar roupas e apetrechos pra vida de bailarina). de melquizedec o presente maior: o grande sertão, em sua primeira edição. pulava as raízes, rodopiava pensando em quando estrearia a vida de artista no santa isabel (o que se cumpriu alguns anos depois). e os medos eram tão menores, e as janelas dos carros (em tão espantoso menor número, que não empacavam toda a cidade) viviam abertas ao vento. o temor era errar o ônibus e ter que andar beeeeemm mais, principalmente na minha tenra fase de míope que ainda não queria usar integralmente os óculos. quantos torre(s) tomados em lugar do(s) brejo(s), ambos de fachada laranja, logo ao pé do clube português. às vezes, preferia ir para av beberibe, havia menos chance de equívoco ao tomar a lotação...
lembro do grande trauma do quase assalto, quando um molecote tentou puxar-me os óculos de grau que eu admitira (pela mais absoluta e imperiosa necessidade) usar todo o tempo (até pra tomar banho!). e foi tão simples barganhar: menino, bota isso na tua cara, pra ver se tu enxerga alguma coisa! se tu me roubar os óculos, eu nem pra casa volto!
lúdica contenda de idos tempos, não tanto na cronologia aritmética simples, mas na verticalização assassina uma infinidade. eu quero mesmo é uma suposta (in)volução, que este caminho pra virar de urbe a pólis, ou pior, metrópole me deixa parva e cansada e tonta e cada vez mais amante de felinos e espécies mais evoluídas, do que dessa raça dita humana. eu quero mesmo, e por isso vivo numa casa, sem cerca elétrica e sem muros imensos, com cadeira na calçada, é que o recife aldeia de onde vim seja o lugar que habito.


imagem:static.panoramio.com/photos/original/812076.jpg

sexta-feira, abril 16, 2010

sons que me movem




o primeiro e mais forte deles é o barulhinho do mar, quando a gente senta numa sombra de fim de sol, mãos na areia fria e consegue apenas concentrar-se no próprio diafragma. nessa exata hora, o mar chama, com seus amavios de encantos e abraços líquidos.

e fui aprendendo de tantos outros sons, o bem-te-vi e suas amigas jandaias, que todo dia, às 5h e às 17h faziam sinfonias na janela de onde eu antes vivia, na rua sem saída.


antes ainda disso, que memória não segue cronologia aritmética, me danava escadas abaixo, correndo, quando o amigo vendedor de algodão doce (daquele das carrocinhas que fazem na hora e acumulam um delicioso açúcar queimado nas bordas) soltava seu apito. tanto do tal açúcar me era dado de presente, logo a mim, que mal comprava o algodão doce...

e a música de Scot Joplin, Ragtime, que fazia uivar meu companheiro Kalino.

o assovio lá longe, jeito outro de meu nome, só meu: que assim me chamava o avô.

e música, sempre. o pai e o aprendizado dos eruditos: meu pai me deu Bach de presente, meu olho ainda se verte quando nisso ponho o pensar, e o ouvido do juízo, imediatamente, me traz de volta o som.

fui trocando com o pai esse gostar. ensinei a ele: jazz, blues. dei de presente a ele john coltrane, ella fitzgerald...

"olha pro céu, meu amor, vê como ele tá 'rindo'..." era assim que eu cantava, com o avô. uma bagunça esse relato de remembranças aqui. tão longe vai meu juízo nessa perquirição e lembro as sonatas pra cello, do mesmo Bach, Pablo Casals. Depois, tantos tantos. E a pergunta: "ô, pai, como é o peixe pau??" ele, atônito e rindo, quer saber de onde tirei isso...
da música que Elis Regina canta: "Cai o peixe ouro, cai o peixe espada, cai o peixe pau!!" (Na verdade é 'rei' em lugar de peixe, e a música é Cartomante, de ivan lins).

e continuo caminhando, com tantos sons e vozes e cheiros que me soam. e aprendendo mais e mais a ouvir o silêncio, que nos educa pras memórias auditivas e sinestésicas.

domingo, abril 11, 2010

mãos de fiandeira




todo dia, no exercício de escoar a si mesma o tempo, com a delicadeza de quem se vela, mantinha o hábito de dedilhar o piano, de inventar afazeres manuais (basculhos de enfeitar, sabonetes pintados em desenhos miniaturas, flores de sabonete, velas) e, sobretudo, costumava criar guloseimas (tortas, bolos, docinhos) e fiar fiar fiar... tinha almofada de renda de bilros, gostava de tudo à antiga forma de procedimento, da que se planta da semente e se zela até o germinar.
assim era que fazia as roupas para os netos do aproveitamento das sacas de algodão tão alvo que lhe trazia o marido, já tão cioso índio que era, das sucatas de sua lida com o açúcar...
e pra neta muito alva fazia maior especiaria: tingia o costurado, pra menina não restar tão sempre de uma só cor branca.
hoje começa a memória remota a assaltar as palavras poucas. a saudade e o atraso pra reencontrar o afeto de mais de cinquenta anos de vida comum, a saudade da terra dos doces (natal) e a invocação materna: infante ponta que se religa.
mas as mãos permanecem hábeis, agora, mesmo mais lentas, mas sem artrose e peritas em fazer cafunés...

imagem: A Fiandeira, de Van Gogh

segunda-feira, abril 05, 2010

a cada dia o seu cuidado




aprendendo a respirar fundo e sem pressa, na exata medida de plenos pulmões e cura das maleitas que se acumulam numa lida. a dose sábia homeopaticamente administrada: e a corrida para, espantando um intruso, preservar o bem do próprio clã. guarita montada, esguicho de água em punho: arma bastante.
e a espera de que cada semente e cada pequena muda, em seu próprio tempo, se vá fazendo viço e fruto.
como quem come todo dia apenas o necessário, nada além: a justa dose de vida se suga do beijo matinal que alimenta os caminhos, quando se bifurcam, para logo mais se reencontrarem, no outro renovado beijo, que sela o retorno ao lar.


imagem em: http://espiritosolido.blogspot.com

segunda-feira, março 29, 2010

de lagarta a borboleta e o reverso ciclo ad infinitum




quando me dei conta (expressão que tanto usamos e nem mais parecemos perceber em sua força), vi tão mais límpidas as escolhas que vinha fazendo. parecia, então, que transitava pelo redemoinho de uma imensa provação, a maior talvez até então, em certo plano da vida.

mas novamente as pontas dos fios iam se atando e, tão-somente, pondo mais convictas as constatações: joio e trigo; boas sementes e terra fecunda; água e óleo... os imiscíveis e as convicções de manter-se partícula e onda, variável, mas sem transigir na essência: o que ao universo irradia-se é o que dele nos volta!

e os novos passos, ainda em espera no exercício paciente mas em paz, ganham contornos mais nítidos de o quão acertado é o cultivo do caráter e da honestidade, sem falseamentos discursivos e falácias.

só sabe como nascem os girassóis quem ousa plantá-los e cuidá-los durante todo o longo e exigente percurso até a florada. só sabe o vero canto dos pássaros quem ousa recebê-los no lar sem grades, sem gaiolas, e deles receber o canto livre.

só sabe do amor quem faz laços com felinos, plantas, flores, águas e outras formas de vida.

(para nina e zuzi)

imagem de: http://www.zazzle.com.br/gatos_com_girassois_ima-147653309404030431

quinta-feira, março 18, 2010

historinha de encanto





voltava a menina de bicicleta, para sua casinha no interior, que fica encrustado em pleno refúgio de meio de cidade grande, quando tem um encontro com uma trupe da sua mesma espécie. e olhe que fazia dias que a menina pensava: "dEUS, a liga do mal está vencendo!".
mas eis que a noite lhe prometia um alento...
a menina avista a senhorinha, de humilde cepa, como convinha à natureza na qual se assentava. estava, então, a senhorinha a alimentar seus familiares felinos, toda uma trupe que habita o baldio terreno nas cercanias de onde vivem, as duas: senhorinha e menina. e o diálogo se deu mais ou menos assim:
- boa noite! que linda trupe!
- ô, minha filha, eu cuido deles.
- toda noite a senhora põe comida pra eles?
- é, minha filha. são quinze ao todo, mas eu tenho percebido que, de uns dias pra cá, dois sumiram. um preto e uma rabiscadinha bem grande...
- que coisa mais linda! muito bom lhe ver!
- dEUS lhe pague, minha filha!

e a menina volta pra casa mais leve, no seu finzinho de percurso. em casa, encontra sua famíla, que se centra em duas felinas, também, uma preta e outra rabiscadinha. mais uma feliz coincidência da liga do bem.

sexta-feira, março 12, 2010

extremidades




as maõs, uma primeira devoção. a forma suave de chegar ao machucado sem assustar ainda mais o pequeno pássaro acuado embaixo da mesa, trêmulo como se ardendo em febre; desassistido e ainda incapaz de absoluta independência, na hostil natureza para um órfão tão infante.

assim, o bálsamo. assim, o diminuto aprendizado da exceção. assim, a doçura da reza, da bênção, do afago.

assim, o laço.

imagem: atuleirus.weblog.com.pt/arquivo/maos.jpg

quinta-feira, março 11, 2010

sobre o sim e o não: as escolhas.





passo a passo, vai-se construindo o inventário, até mesmo à revelia dos desejos. a vidência clara e límpida se constrói como asseio de ânima, e graças aos dEUSES, não requer normas de fundamentação teórica nem submissão ao crivo de supostas autoridades. por isso a arte não cabe, em verdade, no espaço autolegitimante das reinvindicações institucionais.
pelo viés do menor, controem-se benjamins, rosas, mestres zezinhos e nóbregas, que são cortejados mas não cedem seu passo, afinal, o pedido de presença se faz tão depois de já terem sido negados.

Imagem: comic do meu caro amigo Copi, outro ilustre irônico, a fazer parte da lista.

terça-feira, março 09, 2010

momento sarcasmo




por que nomeamos de amor esse tal sentimento que nos prende a alguém? e por que assim nos deixamos atar? as vezes penso que é mais uma espécie de atadura calcada em recalques (trocadilho infame, mas procedente) e que melhor seria curar-se no divã do analista. por mais despesa que se tenha com a sessão de psicanálise, acaba-se tudo ao pagar a conta. pior é no casamento, que acumulam-se contas de toda ordem, e ainda se encontra constante fonte de alimentação para que o tratamento analítico dure infinitamente.
como uma ladainha...
e constrói-se o clã familiar sobre esta mesma ladainha, reproduzindo-se como peste o mesmo discurso, as mesmas impressões que se cristalizaram sobre alguém. se lhe coube o rótulo de filho dileto, responsável ou ordeiro, admirável etc, aproveite-o: é como um tíquete premiado de loteria.
mas se você tiver sido "diagnosticado" como "desviado", por mais que se converta no bombeiro de plantão para todo e qualquer tipo de incêndio familiar, para qualquer um dos membros, a sentença é ser sempre criticado. mesmo que as pessoas continuem recorrendo a você, nada é mérito, apenas a mera obrigação. e não demore a cumpri-la!
viva os animais, ditos irracionais, que fazem sexo, procriam (quase nunca em uma superpopulação tão danosa ao meio quanto os humanos) e nunca tiveram entre eles relatos da dita "civilização"...

Imagem de:http://www.graphitelight.hu/

domingo, março 07, 2010

e o oscar vai para...



como eu gosto da ideia do bom senso imperando. ai, que alegria quentinha me dá, se imagino uma pessoa discreta servindo de modelo e referência.
o bom humor, daqueles legítimos, sem apelos e concessões ao império do mau gosto. o sarcasmo como elegância primária, quase um modelo de calça de algodão do mais puro (extraído de um saco de algodão de açúcar reciclado), bordado pela avó, na tarde de cuidados no terraço, enquanto olha os netos a brincarem na areia, e não a suposta peça quase exclusiva (igualzinha) da coleção outono-inverno (duas estações que nem existem à vera em nosso calendário) bordada pela exploração de um trabalho vergonhosamente remunerado e vendida a peso de ouro, na promoção de ocasião, de R$480,00 pela bagatela de R$399,90...

e o oscar vai para... a havaina comprada no mercado da encruzilhada, por 1/3 do valor nos endereços dos chiques e famosos!

segunda-feira, março 01, 2010

atualizações





encontrar um pinico de ágata, vermelho.

confeccionar um bodoque de madeira com borracha de fazer garrote.

comprar uma chaleira, daquelas que apitam quando a água ferveu.

encontrar uma máquina olivetti lettera 32, verde. daquelas com fita preta e vermelha.

um ferro de passar roupa, preto, de ferro, daqueles que esquentam a carvão. (nesse eu peguei hoje, no mercado da encruzilhada).

encontrar toalhinhas higiênicas daquelas de tecido para os "períodos do incômodo".

filtro para café de pano.

andar pelas ruas sem tanto temor de carros, assaltos e de pisar em bosta de cachorro.

acreditar que o bem vai vencer no final.

sábado, fevereiro 27, 2010

incomunicabilidade





sempre a saudade é alegada
pela voz do outro lado
na longa distância física
de uma onda sonora

quando poucos metros
facilmente vencidos
trariam o abraço

do lado seco da margem
o rio represa
um choro calado

(imagem: Emmo Tree by tator_tot_1158 in media.photobucket.com)

terça-feira, fevereiro 23, 2010

brainstorm





as vezes vivências passadas, sobretudo as mais traumáticas, insistem em bater-nos à mente. a sensação é de uma tormenta de memórias embaçadas e embaralhadas a ponto tal, que descanso as duas mãos sobre o teclado, como a sentir e invocar o desejo de conseguir que elas se movam eficazmente, construindo as devidas palavras que traduzam as imagens, palavras, cheiros, sons a assaltar os sentidos.
e quase instintivamente, a personagem se vê abrindo antigas correspondências, daqueles que tiveram forte passagem em sua vida e saíram de forma um tanto brusca, ou ainda nela estão (mas com uma distância herdada da mudança no registro da relação). e começa a julgar-se, implacavelmente. pensa na provação pela qual está passando, pensa se a merece, se a fez por merecer. pensa nos possíveis maiores significados que existam no funcionar das engrenagens do universo para que assim esteja vivendo.
o quanto de prudência e planejamento sempre teve; a forma generosa de relacionar-se, a disponibilidade: tudo isso em choque com a sensação de isolamento, uma timidez não pressentida por terceiros, uma viga fincada no estômago.

a personagem tenta um fluxo de consciência, mas as palavras escapam. a personagem tenta chamar a atenção do narrador supostamente onisciente, mas que parece nem conhecê-la, de tão distante que está de perceber o que vai pela mente dela, suas angústias e seus temores.
o narrador a pinta, com sua autoridade de conhecedor total, como plácida, tranquila e contente. quando o que ela sente é medo, até de mover-se.

invoca, ela, até o seu criador: pergunta se ele se assume como narrador, ou se disfarçou-se em uma segunda instância criadora (o narrador, uma criatura-criadora produzida pelo que escreve).

ninguém ousa respondê-la. ou ninguém a escuta, tão absortos estão os dois (ou um só? narrador e escritor) que a julgam impiedosamente sem ouvi-la, ao menos?

a personagem, então, ao não conseguir a solidariedade daqueles que a tecem, decide pelo mergulho nas fundas águas de suas vivências passadas, negando-se a fazer coerência com os atos e supostos pensamentos a ela impingidos. a personagem abraça um silêncio que obriga o papel a permanecer branco. a personagem contamina autor e narrador com um bloqueio criativo, enquanto busca, ela mesma, as palavras que talvez possam traduzi-la...

(imagem: cena do filme kasaba, de Nuri Bilge Ceylan, fotógrafo e cineasta turco)

sexta-feira, fevereiro 19, 2010

intervalo

o espaço de mais deleite, quando nos refazemos à necessidade primária e à vulnerabilidade e nos religamos com uma animalidade da qual toda a camada de suposta civilidade não nos pode apartar: o desligamento do estado alerta de consciência, quando o espaço é do que restou latente e pujante. o outro lado da vigília é o prazer mais primitivo, pois que nos restaura a integridade e nos permite o benefício da realização das projeções de desejos ou o enfrentamento, o mais perto do seguro, dos demônios mais fundos.

terça-feira, fevereiro 16, 2010

em movimento


e eis que a personagem precisa mover-se. tomar decisões, atitudes, ou pensar. que é a forma de deslocamento no espaço circunscrito da cabeça, aliás até, a que alcança, por muitas vezes, a maior das distâncias. por isso, a personagem levantou de sua posição letárgica, deitada na poltrona e decidiu, além de pensar, executar alguma ação, que por mais ínfima na forma mais óbvia e superficial de mensurar pareceria quase inócua, mas que a ela apresentava a real dimensão: tomou o telefone, tirou o gancho e discou:
- alô?
- olá, sou eu. eu não voltarei. tchau.


tu tu tu tu tu

do outro lado da linha, a surpresa de quem nunca esperara isso...

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

último ato



só pensava em como podia feri-la, da mais contundente forma, daquela cuja marca seria indelével - palavra de cepa mais erudita pra traduzir simplesmente: algo que não se pode apagar.
todo mundo tem um ponto fraco, até a mitologia ensina o calcanhar de aquiles, não é?
havia de conseguir encontrar a precisa forma de atingi-la com toda eficácia. era preciso, era necessário, era até vital que conseguisse deixá-la inválida, mesmo que apenas internamente, mesmo que o exterior fosse recuperável. aliás, era isso mesmo que desejava: que os vestígios externos da mácula tivessem média duração e se fossem, mas deixassem seu rastro de traumatismo sem cura lá dentro, onde ninguém poderia ver, fazendo dela uma deficiente e inválida não presumida, e que nem conseguiria explicar a terceiros a sua condição.

arrancou-lhe olhos e cordas vocais: foram postas próteses do mais puro azul, ainda mais belas que as órbitas originais, e a última imagem que restou na memória dela era a da dor e do próprio sangue escorrendo pelos buracos dos antigos órgãos da visão...

terça-feira, fevereiro 09, 2010

sumos antigos: cirandinha do araçá




cheiro e gosto
de tempo de infância
quando provei o azedinho leve
como carinho na saliva
e era uma fruta ainda desconhecida
pequena, amarelada e quase acanhada
mas que no odor se impunha
e eis que deduzi pelo paladar
que tinha encontrado a filha
na árvore genealógica da família
uma amiga a partilhar
meu diminuto ser:
era uma goiabinha infante
uma bola de gude de goiaba
um araçá amarelinho
com gosto de mato
e a caminho de mar.

sobre o Estado coercitivo, a liberdade na corda bamba e as crianças ilimitadas


me pergunto tantas vezes sempre, quando vejo aquelas deploráveis cenas cotidianas de adultos (pais ou parentes de qualquer natureza, sobretudo) que atestam, em cena e verbalmente, não "poderem com certa criança"! e se daí não vem o indispensável, de onde, Jeová nos céus, virá??? e seguimos mais e mais a lógica da transmissão de esmagamento, a cada degrau, mesmo imaginário, que um indíviduo julga galgar (mesmo quando ele nem sabe o real significado disso)... e vem a lógica do capataz, tão velha conhecida nossa, quase algo que nossos vereadores deveriam patentear, em tempos nos quais a moda política de "mostrar serviço" é criar projetos de lei para patentear patrimônios imateriais (cachaça, rapadura, frevo), e ninguém lembra do descaráter nacional? cadê Macunaíma que não se associa a Policarpo Quaresma, o corrompe e lança uma franquia de burladores oficiais da lógica coercitiva do Estado, que é aliás empreitada das mais fáceis, considerando-se que, se algo de tal lógica sobrevive, é apenas nas aparências.
como a tão necessária e esperada "lei do silêncio", ou coisa que o valha, que tenta coibir o mau gosto alheio de se impor enlouquecedoramente a todos, sobretudo com a facilidade física de propagação do som (como são perversas as leis da natureza, não?) e fazem a ostentação das potências de caixas de som de casas e automóveis invadirem espaços e ouvidos alheios?
que tal também uma campanha de otorrinolaringologistas (adoro o palavrão) distribuindo aparelhos para deficientes auditivos a quem não tem nenhuma deficiência (ainda, auditiva; só cerebral e na educação do gosto musical e estético) para que se consiga, de fato, que o aumento do som no local de "captação do dejeto sonoro" (para que fique beeem claro, o ouvido de quem põe e repete mil vezes a mesma infâmia sonora a toda altura) seja tão amplificado, que o volume final resulte de fato diminuído... afinal, o disque denúncia quase nunca funciona, pelas tantas razões da hipócrita "lei da boa vizinhança" ou do excesso de tráfego e de funções do Estado coercitivo, mesmo que delas ele nunca dê conta...

Restam-nos Mafalda e Quino, para o resguardar do humor, mesmo na situação adversa...

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

um jogo


"o romance é um jogo. eu sempre advirto que a palavra romance, na capa de um livro, significa fábula", a lucidez de apontar as máscaras e de examinar a realidade à volta, sem papas (literalmente) na língua, sem medo de hagiologias, um jornalista que soube ser escritor crítico e fabulista, lúdico e historiador de avessos: Tomás Eloy Martinez, que descanonizou a santa Evita, na santíssima trindade da iconoclastia portenha, junto a Néstor Perlongher e a Copi.
Vai-se Tomás, mas deixa-nos a brincadeira com as cobertas e descobertas da ficção.

Foi-se, também, aquele que dizia: "não comento autores, comento livros", como a atestar a necessária independência entre homem/obra, para que caiba ao discurso crítico a lucidez de separar afetos pessoais, melindres, medusas e literatura... Wilson Martins, autor (entre outros) da História da Inteligência Brasileira (7 volumes).

sábado, fevereiro 06, 2010

historinha


a situação já ia beirando o insuportável: incontorna-se uma turba em furor e desalinho, no máximo se consegue atravessá-la por perfuração e muita tenacidade. assim se sentia ela, a personagem. mas precisava se mover, mesmo com o som infame que insistia em lhe perturbar o sentido da audição. sempre se pautara por tanta convicção e certezas e uma inabalável crença na honestidade, que mal podia crer estar tão injustamente naquela situação. mas não trairia a si, por isso desejava e mesmo assim continha-se, calava. um silêncio que era a própria mão arrastando em muro chapiscado de cimento, com tanta força que o tapete de heras (disfarce de hipócrita maciez) parecia holograma apenas. e ela decidira não abrir mão de si, a única raiz pela qual prezava, fincada lá fundo, desde a mais infante memória, quando soube o que era proteção. e o que era a contrapartida desta: o estupro, a invasão, a violência dos sentidos e da ordem natural.
o pacto houvera, o pacto vingou. o pacto foi a raiz reconhecida e renovadamente escolhida.
então, era preciso seguir, nem sempre sabendo como ou para quê. mesmo após desistir, precisava seguir, pois assim fora o pactuado. e ela iria, que palavra de homem não volta atrás...

como quem cria planta, a responsabilidade indelével da terra, da água, das flores. como quem cria bicho de estimação, a responsabilidade indelével do abrigo, da água, do alimento, do afeto.

ela seguia como planta criada por si mesma, como bicho de sua própria estimação.

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

da série: travestis

a lagarta é um dos fundamentos do travestismo na natureza
e sua face-diva travestida é a borboleta


e a obsessão rege o obsceno
que tantas vezes acompanha a beleza
o amor e a dor
e funda o primeiro olho
que transgride a norma
ao desejo tão alheia

da série: as esperas


uma lagarta sabe sua sina de paciência


seu fado é talhar-se diariamente em saliva uma morada que é vestimenta
que é também biombo e limbo
de onde sairá borboleta

esta última, final estágio de metamorfose do mesmo ser
é a imagem única pelo alheio cobiçada

além da seda, dos fios de saliva da lagarta



a esta resta
apenas:
o asco, o nojo, a condição de borralheira,
as esperas todas para desfazer-se de si
e permanecer em outra máscara
assim sendo admirada
se se veste de asas e cores

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

olho d'água


olho d'água na fonte
jorrando desbragado
se para é praga
que vem de tão longe
que nega o coração

olho d'agua parada
é leito de corpo em descanso
é suspensão das tensões
é lenitivo de alma

olho d'agua
é abraço de rio
ao corpo que brota
é natureza em amavio